domingo, 20 de fevereiro de 2011

Doce saudade do medo.


Retroagi ao tempo de minha infância, e comecei a fazer uma relação das minhas saudades. Está uma noite preguiçosa, uma chuvinha que começou fazendo pequenos barulhos no telhado, e que agora já dá prenúncio de que vai ficar forte e sem hora para parar. Como o sono não chega,eu sento no chão e vou revirar as gavetas. Buscar sem pressa a relação das minhas saudades. Uma saudade puxa a outra e assim vou noite afora lembrando de várias, mas principalmente uma: Saudade do medo. Como eram gostosos os medos antigos. Quando a gente fechava os olhos e passava correndo no corredor comprido da casa de vó, e só abria quando chegava na cozinha; quando estava escurecendo e não tinhamos coragem de olhar dentro do quarto de tia Augusta e vê-la ajoelhada rezando à luz de velas, as suas novenas em frente ao oratório. A gente tinha medo que é até difícil lembrar... Medo de estragar os sapatos chutando pedras e latas, medo de sujar a roupa nova que era feita para vestir na festa de setembro. Medo da bateria de bombas que passava ao lado da casa de vó. Medo terrível das Zaninhas, Chico Dalina, e os medeiros nos pegar, mas assim mesmo o medo era menor que a sedução das pinhas, dos cajás, cajus, e mangas que seduziam nossos olhos, como se o gosto da fruta entrasse pelo olhar. Medo do olhar severo de papai. Da chuva com vento, trovão e relâmpago, que até hoje assombra a minha irmã. Nessas horas de chuva forte com ventania, papai fazia uma cruz com os ramos bentos por Padre Aíres e jogava na enxurrada. Medo de ladrão que destelhava a casa mesmo que só tivesse para roubar feijão, arroz e uma lata de goiabada. Medo dos jagunços que apareciam pelo sitio e chegava a noitinha quando não se esperava e ficava por lá uns dias.. Medo da palmatória na hora do argumento da tabuada. Medo de falar na hora da missa e mesmo assim catucava a amiga para mostrar que o menino mais bonito nos olhava. Medo enorme de olhar nos olhos de nossa mãe e ela descobrir que estavamos apaixonadas. Medo de acordar papai ou tio Rafael quando íamos para casa de vó. Nesses momentos não falavamos, apenas sussurrar era permitido. Doce saudades desses medos de infância. Vou fechar o baú das lembranças e afugentar o medo de continuar escrevendo, nesta manha que começa ou será a noite que termina e o sono não chega?

2 comentários:

  1. Ah, a saudade e suas lembranças. Também é um hábito meu abrir gavetas e armários no meio da noite enquanto o sono não chega. E recordar sempre é reviver, de uma maneira um pouco mais indireta, mas ainda assim nos faz bem. E o que somos sem nossos medos de infância? O medo sempre estará conosco, eles só crescem e se transformam com a gente, mas nunca nos abandona. De certo modo, o medo nos mantém vivo, conscientes de que existimos e encontramos desafios todos os dias em nossa vida.
    Adorei seu texto.

    Forte abraço!!

    ResponderExcluir
  2. Ah que medo gostoso de sentir, por alguns segundos me vi naquele corredor e lembrei de cada um dos medos....saudade da casa de vó, das pitanga...isso tudo aflorou em mim a saudade de alguem que nao conheci mas qye carrego seu nome com muito orgulho, vovó Emília, tenho curiosidade de saber detalhes de sua personalidade, suas preferencias, suas características, suas habilidades enfim...saber como ela era. Amei seu texto Lu.

    ResponderExcluir