sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Choros


"Um dia desses, eu separo um tempinho e ponho em dia todos os choros que não tenho tido tempo de chorar." Drummond 





"É engraçado quando paramos e percebemos que sempre temos tempo pra tudo: dançar, sair com amigos, cuidar dos filhos, do lar. Mas, nunca tiramos um "tempo para organizar nossos choros!" Cuidar do nosso eu, que mergulhado em plena escuridão, no abismo de nossas indiferenças, pede por socorro. Tem momentos que precisamos jogar em auxilio ao eu, os trapos velhos e rotos, muitas vezes até apodrecidos, nas axilas, entre os braços e as cordas que sustentam esse eu e tirar o mesmo desse abismo. (Parafraseando Jeremias 38:12-13). Só assim,conseguiremos caminhar, subir montanhas consideradas intransponíveis, recolher as pérolas das experiências de vida sem frustrações, sem medo de ter tentado algum dia realmente ser feliz. Chorar! Ter tempo para chorar, é algo que necessitamos fazer com urgência!Que me entendam os que vivem de determinismo... Rir, nem sempre é sinal de felicidade! Chorar, nem sempre representa tristeza! O choro pode ser nada mais, nada menos, do que seu eu gritando por socorro, querendo ser livre para junto de você (o eu exterior), poder comer, tocar e amar o outro.Não disfarce, seja você mesmo e deixe o seu eu livre do abismo [...] Então, verás o eu completo em ti novamente!"    
 Jufran

sábado, 24 de maio de 2014

Tardes I

“Entro na casa onde nasci
O tempo emprestou sem dó uma cor
Amarelada  às suas paredes.” ______Manoel De Barros


A porta aberta deixava entrar em suas paredes nuas um vento frio e calmo. Entardecia... E o céu tinha cores  rubras e cinzas. Fui entrando devagarinho naquele santuário... Passei meus olhos pelos lugares onde antes ficava a máquina de costura, os quadros e retratos da família. Entrei silenciosamente nos quartos e ali ainda encontrei vestígios  da vida que ali vivi. Algumas folhas soltas dos cadernos, pedaço de uma história que tinha ido embora... Uma mala... Tinha uma mala naquele quarto antes habitado por nós, Num frenesi de ansiedade procurei ver o que ali restava. O amarelado do tempo se fazia imperar... As calçadas altas  com os seus degraus estavam em ruínas, e naquele tarde o meu coração também. As lembranças jorravam em turbilhões... eram vozes, cheiros, sabores, tudo vinha engolfando-se, sobressaindo-se nos sentidos aguçados pela solidão da tarde... Os terreiros de terra vermelha, os currais, as árvores e o grande juazeiro do quintal já não estavam ali, apenas o mourão se mostrara resistente ao tempo que passou... para onde fomos todos?  Outras construções, outros vizinhos foram chegando... Parei no meio do silêncio, aquietei a tarde dentro de mim e fui embora sem coragem de olhar para trás porque sei que as lembranças acenariam e eu já havia guardado todas na mala que ficou no canto esquecida...

sexta-feira, 28 de março de 2014

O Jardim


Tenho um jardim estranho,
desolado, embora doce,
onde uma rosa bem rosa aparece vez em quando,
fica, perfuma, parte, sem que eu a comande.
No jardim, de vez em quando,
tem uma rosa doce e fugidia,
que vem e parte antes que me acostume,
e caso o faça, caso desvairadamente o faça,
ainda assim parte, ainda assim voa para longe,
e fica um vazio na grama,
fica um vazio na foto, na moldura,
fica um vazio na alma,
a ponto de eu cogitar, noutro desvario,
preferir que nem venha, que não volte,
mas é só um desvario tolo, que passa antes
que eu respire outra vez ainda,
só um desvario tolo:
eu morreria sem ver a rosa vez em quando,
sem olhar seu entorno,
sem perceber em suas pétalas o sol,
ou o vento, ou a luz, ou a sombra, ou chuva.
Acho que penso isso por que cada vez que parte,
a rosa me corta com seu mais mordaz espinho,
cada vez que é levada eu me corto por dentro,
eu sangro, eu sofro, choro, lamento.
Cada vez que a rosa vai ainda fica seu perfume,
o jardim fica silente, arrumado,
tenho mais tempo.
E mais tempo e menos cuidados não traz paz alguma,
apenas um vazio maior que uma cratera,
de uma lua que explode em minha vida.
E quando está aqui, neste jardim desolado
e doce de meu peito,
não tenho tempo que baste, nem forças,
tenho mil compromissos que a rosa às vezes
não entende. Noutras leva com uma
madureza própria das sequoias,
e veja que a rosa bem rosa ainda é pequena.
Mas sempre, sempre, a rosa vem, perfuma e parte,
sempre, sempre, regularmente,
e regularmente me alegro quando chega,
me alegro quando fica, enquanto fica,
e ela parte,
deixando outra vez um jardim vazio,
incompleto, silente, triste, amargurado.
É só um jardim, é só uma rosa,
e só um jardineiro, incompleto boa parte do tempo.
E se algo me consola, neste jardim insano,
é imaginar a rosa alegre, bem, regada,
alimentada, envolta em luz e uma vida boa,
porque se dói haver uma rosa que parte mais
do que fica,
maior dor seria não haver rosa alguma.



William Douglas

quarta-feira, 26 de março de 2014

Foi para ti...

Foi para ti 
que desfolhei a chuva 
para ti soltei o perfume da terra 
toquei no nada 
e para ti foi tudo 

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Mia Couto

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Poderia


Poderia falar de amor, mas sobre o amor pouco se fala diante do muito que se sente e do pouco que se explica, pelo menos por palavras.
Poderia falar de paixão, mas ela é tão efêmera que corro o risco de investir num discurso que se perde no ar, tão logo o fogo se queima e a chama se apaga.
Poderia falar de desejo, mas diante do real, talvez me perdesse entre o que posso e o que verdadeiramente anseio.
Poderia falar de família, mas descubro na solidão minha maior companhia: filha, mãe, mulher, pessoa... Todas juntas numa só.
Poderia falar de trabalho, mas o cansaço me impede e minha alma padece de tanto lutar.
Poderia falar de amizade, mas prefiro falar de coleguismo já que amigos são poucos, colegas, um montão.
Poderia falar de saúde, mas nesse momento, meu corpo sente o peso dos anos e a crueldade das amarguras.
Poderia falar de solidariedade, mas o “cada um por si e Deus por todos” é o que tem reinado e o que tem vencido.
Poderia falar de respeito, mas ser diferente traz no peito a dor de destoar.
Poderia falar de compreensão, mas porque ter razão se a razão é não ter o porquê.
Poderia falar de entusiasmo, mas a luz que ilumina meus atos apaga-se quando o rumo vai contra meu desejo.
Poderia falar em crença, mas minha fé inabalável está de recesso enquanto meus valores são bombardeados pela injustiça.
Poderia falar de tristeza, mas carrego comigo a certeza de que, mesmo triste, alegro-me por viver.
Poderia falar de problemas, mas prefiro falar de soluções já que o problema é não resolver.
Poderia falar de pessoas, mas escolho falar de mim porque olhando para dentro não corro o risco de errar a pontaria.
Poderia falar de ódio, mas como fazê-lo se meu coração está lotado, mas não dessa emoção?
Poderia falar do acaso, mas minhas escolhas me impedem de banalizar os resultados diante das opções por mim de-ter-minadas.
Poderia falar de crueldade, mas sem dúvida é melhor registrar a bondade que mora no meu interior e se extravasa na minha atitude de não querer para o outro o que não desejo para mim.
Poderia falar de silêncio, mas meu ser suplica por dizer o que calo no espírito e o que se deixa escapar no olhar.

Poderia falar de fim, mas começo a perceber que o início é diário e que o destino se traça em cada novo amanhecer..._________________*Cristina Hinn

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Ontem

"Olho para essa menininha que já fui, e sorrio. Aposto como, nem de leve, ela podia imaginar a mulher que me tornei. Percebo que ainda temos os mesmos olhos, embora agora estejam mais cansados. De vez em quando faço isso, volto ao meu quintal ancestral, às vezes gosto, às vezes não, de ver a passagem do tempo. Mas não conto a ela, tão pequena, tão doce, desse meu possível endurecimento. Não por proteção, mas por delicadeza.

A menininha que já fui olha para mim como se eu fosse uma verdade metafísica. Não sou. Talvez ela é que tenha sido, mas não tem importância, porque uma coisa é certa, e essa eu conto à ela : não fiquei só sentada ouvindo as historias dos outros. ..



 Solange Maia

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Um poema pra noite que começa

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade