sábado, 16 de julho de 2011

Poema na manhã que renasce



Uma manhã não serve para muita coisa. Porque uma manhã não é muito. Sobretudo uma manhã não é um tempo real que se possa medir com as horas do coração. A menos que amanhã tenha apenas a função de ser um expediente. Nesse caso, toda manhã pode ser medida não só pelas horas mas também pelas assinaturas, os carimbos, os vossas execelências. Uma manhã, pra ser de verdade, deveria ser qualquer coisa parecida com um poema. Não, não quero uma manhã de versos, parnasianos ou modernistas. Nem desejo repetir os suspiros de saudade do poeta Jorge Fernandes, quando um dia, nesta província submersa, acordou com vontade de fazer lindos versos parnasianos. Penso que uma manhã deveria ser um poema, mas penso mais ou menos como pensava Mario Quintana. Não imito, que imitar é tolice. Ninguém imita um gênio. Copio, pois além de ser mais honesto, ainda é salutar para a alma desmedida de horas e minutos, retomar o sabor dos versos de Quintana e seu olhar poético sobre a vida.


Uma manhã, sem mais demora, deveria ser como o poema que Mário Quintana desejou fazer: perfeito como um gole d'água bebido no escuro. Ou "como um pobre animal palpitando ferido." Ou quem sabe, "como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna."Uma manhã bem poderia ser assim, como o poema perfeito. Para Mário Quintana um poema não pode ser contido de outra angústia que não seja a sua própria angústia e sua misteriosa condição de poema.

Deve ser "triste, solitário, único e mais: ferido de mortal beleza." Penso isso agora, nesta manhã que apenas começa, feriado de mortal beleza que parece chamar os olhos pro jardim.

Não chego a pensar no assassinato do poeta. Nem a desejá-lo morto, como Quintana. Mas concordo que um poema, como uma manhã perfeita, deve ser livre como uma pedra que cai no abismo. Uma manhã deve ficar, de algum modo, em algum lugar da alma. Deve ser um pedaço de lembrança que fica como uma pedra preciosa, no cordão de ouro.

Uma manhã é tudo isso e é mais. Sim, há quem não consiga descobrir as muitas manhãs. Há os que limitam às mesmas manhãs, como o gosto sempre igual da pasta de dentes, do sorriso plástico do pente sobre os cabelos e até das rugas que, algumas manhãs, acordam no rosto da gente depois do longo e doce sonho da juventude.
Uma manhã deve ser triste e ser alegre. Deve ser curta e demorada. Uma manhã deve ter o tamanho inteiro da primeira emoção que chegar. Deve ser o tempo do longo vôo da andorinha-do-mar, aquela que passa até 14 mil horas voando para buscar a alegria do verão, no Ártico ou Antártico, onde o verão estiver. Crônica de Vicente Serejo/ escritor e cronista potiguar membro da Academia Norte-riograndense de Letras

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